O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA




O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA

Texto: Murilo Rubião.
Adaptação cênica: Gabriel Arcanjo Rodrigues.

Personagens:

O Ex-Mágico.
O Psicanalista.
O Público.

O espaço cênico é constituído de dois focos principais. Ao fundo uma mesa, atrás da mesa, sentado está o psicanalista, apenas uma leve luz incide sobre ele, mostrando apenas a sua silhueta. Durante toda a encenação ele fará de tempo em tempo alguma anotação em um bloco de notas. Em alguns momentos precisos indicado no roteiro ele pontua o discurso do protagonista, este está no centro do espaço cênico, deitado em um divã, uma luz um pouco mais intensa incide sobre ele. O jogo proposto é uma sessão de psicanálise, onde o protagonista é o falante e o psicanalista é o ouvinte, como é comum na análise freudiana, o público é uma projeção da mente do protagonista, portanto funcionam como um terceiro foco presencial, estes devem estar dispostos num semicírculo no lado aposto do psicanalista.

Na entrada do público o protagonista está sentado no divã, cabeça abaixada, o psicanalista está no seu devido lugar, abre um caderno de notas. O protagonista olha para o alto suplicante.

Inclina Senhor o teu ouvido e ouve-me, porque sou desvalido e pobre... (Tira um pequeno espelho de dentro do paletó, se olha, faz uma careta e volta a guardar o espelho.)

Parte 1: O espelho da Taberna Minhota.

Hoje sou funcionário público... (pausa)

Psicanalista: (anotando em seu bloco de notas) Funcionário público...

1)   E este não é o meu desconsolo maior.../ Na verdade eu não estava preparado para o sofrimento./ Todo homem ao atingir certa idade pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes através de um processo lento e gradativo de dissabores./

2) Tal não aconteceu comigo,/ fui lançado à vida sem pais, infância ou juventude./ Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos no espelho da Taberna Minhota.


3)   A descoberta não me espantou.../ Tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante... Puf!/ Ele sim, perplexo perguntou-me:/ Como eu poderia ter feito aquilo?

4)  O que poderia responder nesta situação uma pessoa que não tinha a menor explicação para a sua presença no mundo?/ Disse-lhe que estava cansado, nascera cansado e entediado!

Psicanalista: (anotando) Cansado e entediado...

5)  Sem refletir na resposta ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos!


Parte 2: A trajetória artística do mágico

Retirando do interior do paletó pratos invisíveis que oferece aos espectadores.

Segunda feira: Virado a paulista, uma delícia, servido? Especialidade da casa!/ Terça feira: Dobradinha, com costelinha de porco e ovo cozido! Especialidade da casa!/ Quarta feira: Nossa tradicional feijoada completa, com laranja e tudo. Está fumegando! Especialidade da casa!/ Quinta feira: Macarrão com frango ou nhoque com carne assada! Especialidades da casa!/ Sexta feira: Peixe ao molho de camarão ou costela assada! Hum! Está divino... Especialidades da casa! (pausa)

1)  O homem, entretanto não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos que extraia misteriosamente de dentro do paletó.../ Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo nos lucros apresentou-me ao empresário do circo parque Andaluz (vai até a alguém do público, cumprimenta-o como se este fosse o empresário: Prazer...) que posto a par das minhas habilidades propôs contratar-me (cumprimenta novamente: fechado.)

2)  Antes, porém, o homem o aconselhou  que se prevenisse contra os meus truques,/ pois ninguém estranharia se me ocorresse à idéia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.

3)  Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão o meu comportamento foi exemplar.../ As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como trouxeram fabulosos lucros aos donos da companhia. (pausa)

4)     A platéia em geral, me recebia com frieza, talvez por eu não me apresentar de casaca e cartola,/ mas quando sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cabras, lagartos os assistentes vibravam!/ Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos um jacaré./ Em seguida comprimindo o animal pelas extremidades transformava-o numa sanfona, encerrando o espetáculo com o hino nacional da Cochinchina!

5)  Os aplausos estrugiam de todos os lados! Sob o meu olhar distante.../ (pausa) O gerente do circo, a espreitar-me de longe danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência.../ Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo...

6)     Porque me emocionar?/ Se não me causavam pena? Aqueles rostos inocentes destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem?/ Muito menos, me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive:/ Um nascimento e um passado!


Psicanalista: (anotando) Um nascimento e um passado... Hum... Interessante...

Parte 3: O descontrole da mágica:

Senta-se desolado olha o público, retira novamente o espelho do interior do paletó, mira-se, faz uma careta, volta a guardar o espelho.

1)    Com o crescimento da popularidade minha vida tornou-se insuportável!/ Às vezes sentado em algum café a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas.../ As pessoas que se encontravam nas imediações julgando intencional o meu gesto rompiam em estridentes gargalhadas,/ eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros (Malditos pássaros! Malditos pássaros!).

2)  Se distraído, abria as mãos delas escorregavam esquisitos objetos, a ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura e depois outra, outra, outra, outra, outra.../ Por fim estava cercado de figuras estranhas sem saber que destino lhes dar./ Nada fazia, olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma./ Situação cruciante! (pausa)

3)     Quase sempre ao tirar o lenço para assuar o nariz causava assombro dos que estavam próximos sacando do bolso um lençol.../ Ao mexer na gola do paletó logo aparecia um urubu.

4)  Em outras ocasiões indo amarrar o cordão do sapato das minhas calças deslizavam cobras,/ mulheres e crianças gritavam, vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo!/ Tinha que comparecer a delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas./Não protestava, tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico reafirmando o propósito de não molestar ninguém.

5) Também à noite em meio a um sono tranqüilo costumava acordar sobressaltado,/ era um pássaro ruidoso que batera asas ao sair do meu ouvido (Malditos pássaros!)./ Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas mutilei as mãos,/ não adiantou, ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço./ Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.

Psicanalista: (anotando) Um mágico enfastiado do ofício...

Parte 4: A busca desesperada pela morte:

1)  Urgia encontrar solução para o meu desespero/ (anda de um lado pro outro, refletindo) Pensando bem... Pensando... Pensando... (São tantos os pensamentos...) Conclui/ que somente a morte poria termo ao meu desconsolo...

2)   Firme no propósito retirei dos bolsos uma dúzia de leões e cruzando os braços aguardei o momento em que seria devorado por eles.../ (pausa) Nenhum mal me fizeram./ Rodearam-me, farejaram as minhas roupas, olharam a paisagem e se foram./ Na manhã seguinte regressaram e se puseram acintosos diante de mim/ – O que desejam estúpidos animais? Gritei indignado./ Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizessem desaparecer./ (voz do leão) Este mundo é tremendamente tedioso (com desprezo) concluíram./ Não consegui refrear a minha raiva, matei-os todos! E me pus a devorá-los!/ Esperava morrer vítima de fatal indigestão./ Sofrimento dos sofrimentos. Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.

3)   O fracasso da minha tentativa multiplicou a minha frustração./ Abandonei a zona urbana e busquei a serra./ Ao alcançar o seu ponto mais alto, que dominava o escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço./ Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte, logo me vi amparado por um pára-quedas.

4) Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado consegui regressar à cidade,/ onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.../ Em casa, estendido na cama... Levei a arma ao ouvido... Puxei o gatilho a espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.../ Não veio o disparo e nem a morte... A Mauser transformara-se num lápis!/ Rolei até o chão soluçando... Eu que podia criar outros seres não encontrava meios de libertar-me da existência! (começa a choramingar descontrolado)

Psicanalista: (incisivo) Controle-se, por favor. Libertar-se da sua existência... Muito bem e daí?  (volta a anotar)

Parte 5: A Repartição:

1)    Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida./ Escutara de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.../ Eu não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha, se lenta ou rápida,/ por isso empreguei-me numa Secretaria do Estado... 

Retira novamente o espelho do interior do paletó, mira-se, faz uma careta, volta a guardar o espelho.

1)     1930... Ano Amargo...  (reflete) Amargo.../ Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante ao espelho da Taberna Minhota./ Não morri, conforme esperava./ Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo... (pausa)/ Quando era mágico, pouco lidava com os homens, o palco me distanciava deles./ Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.

2)  O pior é que, sendo diminuto o meu serviço, via-me na contingência de permanecer à toa horas a fio./ E o ócio levou-me a revolta contra a falta de um passado./ Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar?

Psicanalista: (anotando) Alguma coisa pra recordar...

3) Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.

4)   O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações./ Distração momentânea (diga-se de passagem). Cedo retornou o meu desassossego.../ Debatia-me em incertezas... Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental?

Psicanalista: Nenhuma experiência sentimental? Quem diria... Continuando...

1)   1931 entrou triste... (reflete) Triste... Muito triste.../ Com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar.../  Ante ao risco de ser demitido procurei acautelar meus interesses... Não me importava o emprego (não! absolutamente!). Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.

2)    Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.../ Fitou-me por algum tempo em silêncio (pausa)./ Depois fechando a cara, disse que estava atônito com o meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.../ (A parte: Um ano? Nossa eu perdi a noção do tempo!)/ Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado (retira o papel do bolso e o abre, verifica o conteúdo)./ Fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.  Revolvi ansioso, todos os bolsos e nada encontrei./ Tive que confessar minha derrota! Confiara demais na minha faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia! (pausa).

Psicanalista: (anotando) A burocracia... Espantoso!

 Parte 6 e epílogo:

Retira o espelho do interior do paletó, mira-se, faz uma careta, volta a guardar o espelho.

1)    Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas./ Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários...

2)  Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.../ Pensam que estou louco! (Eu não estou louco!)/ principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.../ Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos (Benditos pássaros! Benditos pássaros...).

3)   Suspiro alto e fundo. /(pausa) Não me conforta a ilusão... Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico...

4)  Por instantes imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, brancos, verdes.../ Encher a noite com fogos de artifício... Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris./ Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro.../ E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas...

Psicanalista: (fechando o caderno de notas e consultando o relógio) Acabou o tempo.

Como?

Psicanalista: Eu disse que acabou o tempo. Semana que vem mesmo horário, está bom pro Senhor?

Tudo bem... (começa a se retirar, mas se detém. Olha para o público e depois para o psicanalista) Mas Doutor, eu só tenho uma pergunta.

Psicanalista: Pois não?

Estas pessoas (olha o público) Quem são?

Psicanalista: Pessoas? Quais pessoas? (pausa, se encaram por alguns instantes). Semana que vem, ok? Pague para a minha secretária, ao sair.

Obrigado Doutor. (antes de sair, ainda olha o público com estranheza)

Psicanalista: (se levanta, vai ao centro, olha para o público) Pessoas? Quais pessoas? (sai)

FIM.    

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