O ENGENHEIRO METAFÍSICO.



O ENGENHEIRO METAFÍSICO (ou PARA LER E ESCREVER O MUNDO)


Texto 15:

Rua Estado de São Paulo 4C, Zona Sul da cidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. 20 de Maio de 1982. (de volta pra casa)

Está tudo certo...
Sim... Tudo certo...
Perfeitamente certo...
A casa está desbotada e precisa ser pintada...
Bem sei o número da casa... Bem sei...
Poderei até saber como está avaliada
Ou se não está avaliada
No cartório de imóveis que existem para isso.
Bem sei... Bem sei...
Mas o pior é quer não há mais almas lá dentro,
Só eu aqui do lado de fora com as chaves na mão...
E a tesouraria do cartório de imóveis
Não conseguiu que a senhora minha mãe
Que ali morava não morresse.
E a repartição de não sei o quê da justiça civil
Não conseguiu que o marido da vizinha ao lado
Não fugisse com a cunhada...
Mas está tudo certo e eu estou cansado...
Muito cansado...
Porque é claro a certa altura
A gente tem que estar cansado...

Mas eu não sei exatamente
Do que eu estou cansado,
E de nada serve sabê-lo,
Pois não mudaria o cansaço
E tudo ficaria na mesma...
A ferida dói como dói qualquer ferida,
Não pela causa que foi produzida, esta já passou,
Mas ficou a ferida...

Estou cansado, sim...
Muito cansado...
Mas também um pouco sorridente
Por saber que é só isso o cansaço:
Uma sonolência no corpo
E o desejo de não pensar nada,
Certa tranqüilidade lúcida,
Um entendimento retrospectivo e mudo
De já não ter nenhuma esperança...
Sou inteligente, eis tudo!
Tenho visto muitas coisas e entendido muito,
Ou pelo menos alguma coisa
Daquilo que eu tenho visto,
E isto me basta e até me dá prazer
O cansaço que isto me dá...
Afinal a cabeça
Serve para alguma coisa!

Mas não estou pensando em nada,
Ou pelo menos nada específico e central
Que afinal é coisa nenhuma...
E é agradável como o ar fresco da noite de verão
Em contraste com o ar quente do dia...
Não estou pensando em nada e isto é bom!
É como ter a alma inteira em liberdade
E viver intimamente o fluxo e refluxo da vida...
É como se me tivesse
Encostado de leve uma dor nas costas
Ou uma enxaqueca latejante e morna
Que me anestesiasse...

É que definitivamente não estou pensando em nada...
Mas há este sono que se abate sobre mim,
Que mentalmente e universal desce sobre mim,
Que se agrega individualmente em mim,
Esse sono...

Que parece para os outros o sono de dormir,
A vontade de dormir... Este sono de ter sono...
Mas é mais... Mais de dentro... Mais dos lados...
Mais de cima...
É a soma de todas as ilusões e desilusões,
De todas as esperanças e desesperanças,
E é, contudo como todos os sonos,
O mesmo abatimento e brandura,
O mesmo desassossego e esforço,
O fim de não haver mais o que esperar...

Ouço o som do abrir-se de uma janela
E viro-me indiferente o meu corpo
Para esquerda e para a direita...
E por sobre os ombros olho a janela entreaberta...
Vejo uma mocinha loira no segundo andar
Debruçar-se com os olhos azuis
A procura de alguém... De quem?
E tudo isso é sono...
Meu Deus! Tanto sono!

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