O REFLEXO DO ESPELHO NA MEMÓRIA DA CASA.
O REFLEXO DO ESPELHO NA MEMÓRIA DA CASA: (monólogo para três atores).
"Hoje amanhã será ontem"
...Nada... Nada... Nada...
Isto é ridículo...
Inútil...
Chega! Calem-se! Pelo amor de Deus!
Deus?
Deus? Quem diria...
Deus!
A suprema divindade...
Eu tenho horror aos seres humanos...
Principalmente quando estão vestidos para irem ao teatro.
Eles me causam náuseas.
Sensações que não ouso descrever.
Desfilam suas futilidades. Falam nos seus celulares banalidades sem fim.
Não há nada que se possa aproveitar de tudo isso.
Então estamos no teatro?
Não, não estamos.
Na verdade estamos isolados de tudo. Pode ser que estejamos mortos. Ouço as pessoas falarem comigo, mas não entendo muito bem o que falam. Será que estamos mortos?
Não sente esta imobilidade do corpo?
Não... Eu não sinto nada.
Estou desacostumado com o sol, com a chuva, com o mundo. Estou cansado de tudo.
As horas escoam e retornam implacáveis.
Alguma coisa mudou e eu não sei o que é. Ou antes, eu sei. Há em mim um desejo de esquecimento. Não de morte. Mas esquecimento puro e simples.
Eu amei um dia. E odiei na mesma intensidade.
As palavras nada significam agora. As palavras são apenas palavras.
Porque você insiste nisso?
O silêncio é sempre preenchido por este zunido, por este bater de asas de mariposa. Ou seriam folhas ao vento? Ou as asas do anjo da morte?
Anjo da morte?
Não existem anjos.
Está tudo dentro da tua cabeça.
Da nossa.
E lá no fundo da memória há o barulho de ondas num vai e vem contínuo e sem sentido.
Será que realmente estamos mortos?
Você de novo com esta idéia. Vida e morte... Tanto faz.
Aquela menina loira...
Menina loira?
É. Havia uma menina loira que tinha uma pinta no rosto. Aquela menina loira se enforcou. Mas já não era loira e nem tinha pinta no rosto e já não era menina. Enforcou-se num país distante. Do outro lado do oceano. Foi numa árvore no fundo da casa onde morava. Disseram...
Mas talvez não tenha se enforcado. Talvez não tenha nem sequer existido. Talvez seja tudo um sonho.
Devaneio.
O relógio parou, mas ainda se ouve o tique taque.
Sinto-me fora do meu corpo como se eu estivesse dividido em outros. Alguém fala comigo. Tocam o meu rosto. Mas os meus olhos não se abrem para fora, para o mundo.
Estou vivo aqui dentro de mim?
Talvez não seja o tique taque, mas o coração batendo.
Mas o coração de quem?
Se não estou morto, seria melhor que eu estivesse. Aí seria o silêncio, o vazio, o nada.
Mas e a esperança?
Esperança?
O que há é o medo, a náusea, o nojo.
Mas agora o que está acontecendo?
Estou num corredor, deitado numa maca. Mulheres limpam o chão sujo de sangue. Ouço ruídos de rodas, de água escoando. O barulho irritante do ar condicionado. Pessoas conversando ao longe. Choro de crianças...
Será que sou eu que estou chorando?
Eu não sei o que está acontecendo.
Ouço ainda vozes ecoando das paredes desgastadas do edifício. E ainda há este cheiro que eu acho que é de sangue.
Desenhos sinuosos na minha cabeça, como que flutuando na memória.
Estarei mesmo aqui?
E se estou, aqui é onde?
Ou será um sonho que se tenta acordar? Mas quando supomos ter despertado ele se desdobra em outro sonho.
A morte é isso?
Não, não deve ser.
Isso ainda é vida. Mesmo que desprovida de tudo que pudéssemos lhe conferir vida.
Mas então qual o sentido da vida?
O sentido da vida é a própria vida.
E quando estamos morrendo começamos a nascer de novo.
Não é assim o dia a dia?
Eu não sei.
Olho para mim mesmo como se estivesse olhando outra pessoa. E isso me espanta.
O outro que eu vejo sou eu mesmo.
Eu sou o outro invertido dentro do espelho.
Há as lembranças apesar de tudo.
De pedras, de ruas de terra batida, vermelha como meu sangue. De becos, de árvores há muito tempo tombadas. De riachos e brejos. Um lugar chamado Várzea do Burro. Onde havia uma chácara e uma casa com palafitas. Tanajuras, siriris, mamonas, mandruvás...
Mas quem sabe o que é isso? Isso não existe mais. Isso foi há muito tempo.
Éramos crianças.
São tantas coisas juntas sem nexo.
E este som que eu não sei da onde vem?
Este apito na minha cabeça?
Portas rangendo, passos arrastando-se por estes corredores imundos. O cheiro, eu diria agridoce de sangue sufocando as minhas narinas. A respiração sufocante e dolorosa no meu peito como um pássaro que se debatesse para sair de uma gaiola.
E vozes. Tantas vozes. Da onde elas vêm?
De dentro de mim ou dos outros?
Não há dor.
Não, eu não sinto nada.
Há somente esta espera e de vez em quando um vulto que passa como um fantasma.
Por uns instantes tenho a sensação de que me movo.
Mas é apenas a minha imaginação.
E nela ora estou num lugar ora em outro
Os lugares me parecem conhecidos e desconhecidos ao mesmo tempo.
É estranho.
Tantas imagens se misturando.
Eu criança, eu adulto e eu morrendo seremos a mesma pessoa?
De repente um pequeno ponto de luz na escuridão, não maior do que uma formiga vermelha...
Ah! Agora eu me lembro.
As saúvas num tronco de árvore e havia também uma bica, a água cristalina e fresca.
Foi lá que eu encontrei a menina loira. Ela tinha uma pinta no rosto, no lado direito acima do lábio superior. Ela era linda, linda! Aquela menina passou por mim e sorriu. Vestia um vestido vermelho...
Ou era azul?
Eu não lembro.
Fazia calor neste dia e havia borboletas voando em volta de mim.
Mas sem querer me vêm à mente estas imagens...
Estou no centro da cidade, as pessoas caminhando apressadas pelas ruas, uma variedade de rostos desconhecidos, mendigos, camelôs, trombadinhas, prostitutas, executivos com suas pastas, o trânsito infernal, buzinas, sirenes, pessoas gritando, o sol escaldante, uma bandeira tremulando ao longe.
Algo despertou em mim. Alguma coisa que eu não sei explicar.
A manhã chega com o sol...
É a claridade do dia, de outro dia...
Tudo simples e desprovido de sentido.
Um dia se é criança e no outro tudo se dissipa, fica apenas a memória. Toda uma vida perdida em especulações.
Eu me lembro do quintal, do poço artesiano, do palco improvisado, os dias longos outrora...
Agora tudo se diluindo na memória.
Mas estas lembranças são minhas ou de outra pessoa?
Hoje apenas um dia depois do outro.
Assim passando vertiginosamente acelerado.
Até chegar neste ponto neutro onde eu não sei se é dia ou se é noite.
Noite... Dia... Noite... Dia... Dormir... Acordar... Vida miserável!
Quem foi que disse isso?
Um escritor há muito tempo morto.
Ah! Uma pausa no meio da tarde.
Um minuto apenas de eternidade.
E o que é a existência?
Ilusão?
Permanência não se sabe bem de quê?
Despertar não se sabe bem onde?
Ilusão de que um dia se amou e de que um dia se foi amado.
Havia uma cachorra.
Havia os filhotes desta cachorra.
Havia uma família. Pai, mãe e filhos.
Depois a cachorra e os filhotes desapareceram, e pai, mãe e filhos também desapareceram.
Em vão agora eu tento relembrar. Mas tudo foge ou se embaralha.
Quando foi isso?
Onde?
Havia montanhas e lagos e rios e o gado solto que passeava pelas ruelas do povoado.
Havia crianças alegres, brincando em noites de São João.
Tento me encontrar no meio destas crianças, mas eu não me lembro mais como era o meu rosto.
Tento encontrar um sentido ao narrar esta história.
Não sei por onde começar. Não sei para onde ir. Seguir em frente? Recuar?
E voltar a seguir em frente e recuar?
Isso é a vida?
São tantas as direções.
Tudo é aleatório.
No fim o mesmo horizonte.
O vai e vem das ondas.
O tique taque do relógio.
O vento.
A menina loira como um retrato perdido na memória.
Talvez fosse melhor escrever um poema longo. Sem pausas...
Um pássaro voando ao longe.
Um céu azul sem nuvens.
O deserto.
O amor que desperta para depois adormecer...
E que depois permanece como uma doença que não se compreende bem.
Sim, talvez fosse melhor escrever um poema sem estrofes.
Como expirar o ar até não haver mais fôlego.
É isto a morte?
Recomeçar em outro tempo...
Outro lugar...
Eu ainda respiro?
Ainda há ar em volta de mim?
Mas tudo é tão vago.
Tão inexplicável.
Mas se há ar em volta de mim eu recomeço.
Sigo no escuro tateando.
Ouço vozes distintas e imprecisas de pessoas que há muito se foram.
Depois o deserto.
O sol escaldante.
A excessiva claridade.
Então é isso a eternidade?
II
Quando ele chegou ao portão da sua casa reparou ao enfiar a mão no bolso que estava sem as chaves. O portão estava aberto. Atravessou o quintal sem olhar para os lados. Entrou, atravessou a cozinha até a sala. Viu sua mãe sentada em frente à televisão. Ficou intrigado. Sua mãe não havia morrido?
Os que por lá passavam pressentiam a chegada do fim se aproximando. Inconscientes. Imersos não sei onde... Que frase estranha.
Subiu para seu quarto. A janela também estava aberta. A mesma paisagem de sempre. Melhor enrolar um baseado. Estava angustiado. O que havia acontecido com as suas chaves? Onde as perdera? Cabeça de vento isso sim é o que ele era. Mas o que importava isso agora? Sua mãe que havia morrido estava lá na sala assistindo televisão. Olhou-se no espelho e se sentiu maltrapilho. Estava sujo e barbudo como um mendigo. Enrolou meticulosamente e com arte o baseado e deu generosas baforadas
Um apito estridente soa de dentro da minha cabeça.
É o deserto.
É tudo dentro!
Dentro!
Preciso olhar para fora. Lá está a vida.
Ele ligou a TV para assistir a sessão da tarde. O baseado começou a fazer efeito e ele se sentiu entediado. Era preciso esquecer.
Mas esquecer o quê?
Preciso esquecer.
Esquecer.
Tudo isso é real ou uma invenção da minha cabeça?
A vida me espera em algum lugar.
Mas onde?
Quero amar de novo.
Mas tudo parece um sonho. E eu não consigo acordar.
O que é este lugar?
Quem são essas pessoas?
Sou eu que estou pensando?
A cada baforada no baseado ele olhava a janela. Via a fábrica do outro lado da rua. Ali antigamente havia árvores. Mas agora era só concreto armado. E no lugar da frondosa mangueira apenas a chaminé da metalúrgica.
Eu não distingo mais os rostos.
Estão todos embaçados.
Não identifico mais essas pessoas.
Estamos no teatro ou aqui é o cemitério?
Tento recompor a minha memória. Voltar no tempo.
Eu era criança.
Havia um quintal, uma ameixeira e um pé de limão rosa na frente da casa.
E havia o meu pai e a minha mãe e os meus irmãos.
Ainda havia uma cachorra que se chamava Nina.
E havia os filhotes que ela amamentava.
Lembro-me de uma menina loira que eu conheci na bica da mata...
Durante a tarde choveu, mas o calor ainda era insuportável. Sua mãe morta estava na sala, e insistia em ficar lá. Mas ela estava mesmo morta ou apenas adormecida?
Deu um último trago na ponta da bagana que queimou seu dedo.
Depois resolveu pegar uma cerveja na geladeira.
Desceu na sala e sua mãe ainda estava lá sentada com a TV ligada.
Foi à cozinha e abriu a geladeira.
Olhou de soslaio para o quintal e viu parado no portão um homem.
De novo esses devaneios.
Imagens embaçadas como que por de trás de um vidro.
Crianças brincando numa rua de terra vermelha.
Pipas no céu.
Fogos de artifício em noites de São João.
Balões multicoloridos.
E depois?
Um velório e pessoas de preto.
E depois?
Cerimônia de casamento e flores enfeitando a igreja.
E depois?
As luzes do teatro e jovens conversando numa roda.
E assim as coisas vão se sobrepondo.
Pessoas saindo do espelho e invadindo a casa
Montanhas a se perder de vista.
De repente a sirene de uma ambulância.
Meu pai se chamava Messias e a minha mãe todos conheciam por Dorinha.
Dorinha de Maria Auxiliadora.
Meus irmãos eram Paulo e Ana.
Eu só não consigo lembrar-me dos rostos.
Às vezes eles me vêm à memória, mas logo se dissipam. Misturam-se aos rostos de outros meninos e meninas da rua.
O homem estava vestido como um monge tibetano, com mochila nas costas. Os cabelos compridos e ligeiramente grisalhos, mas a barba era negra. Estava anoitecendo e a chuva havia parado. Da porta da cozinha ele gritou: Pois não? Deseja alguma coisa?
Além do fundo do quintal descendo para o lado da várzea que beirava a mata existia uma chácara. O proprietário era o Seu Laerte que tinha duas filhas, Ivete e Ivonete, ambas loiras. Ivete tinha uma pinta no rosto acima do lábio superior. Seu Laerte criava porcos e galinhas. Na chácara havia patos também e uma velha mula chamada Alice que puxava uma charrete toda enfeitada de fitas coloridas.
As crianças sempre corriam atrás gritando: Me leva Seu Laerte pra passear de charrete!
Mas o que é tudo isso?
Outro sonho?
Quando penso que desperto ainda estou no mesmo lugar.
No corredor a onde passam macas, cadeiras de rodas, uma velha senhora carregando chapas de raios-X.
Ninguém me vê e passam por mim como se eu não existisse.
Depois aparecem estes vultos que atravessam paredes.
E vozes.
Tantas vozes falando ao mesmo tempo.
Eu preciso acordar deste pesadelo.
O homem não respondeu nada. Ele mesmo de longe percebeu que o homem parecia-se com o seu irmão. Este por seu lado o ficou fitando por alguns instantes e depois se foi. Ele ficou parado na porta da cozinha espantado. Numa fração de segundos pensou em pegar uma faca, o que fez efetivamente. Depois foi até o portão que estava aberto. Saio à rua e viu o homem que parecia seu irmão dobrar a esquina e correu até lá. Mas ao chegar à esquina não viu mais ninguém.
Eram muitas as crianças da rua. Edmar e Roberto filhos da Dona Vitinha. Dornélio, Davi e Fábio, filhos da Dona Maria que vendia doces e criava coelhos. Vando, Mauro e Waguininho que moravam em frente, filhos do Seu Anibal e da Dona Carminha. Raquel, Rosi e Robson filhos da Dona Nena. Margarida, Robertinho, Soraia, Tânia Filhos do Seu Gervásio. Ivete e Ivonete, filhas do Seu Laerte. Ismael, Paulo, Ana Lucia... Filhos de quem?
São tantos nomes que me confundo.
Os seus rostos meio que tento recompô-los. Situá-los em algum canto da memória.
Mas tudo o que vejo são rostos embaçados como fotografias fora de foco.
Do que me lembro de fato?
Tudo isso foi real ou invenção da minha cabeça?
São tantos os rostos que aparecem e desaparecem.
Foi comigo mesmo que tudo isso aconteceu?
Eu devo estar delirando.
Ele ficou então parado na esquina envolvido por uma espécie de torpor. Voltou pelo mesmo caminho. Alguns vizinhos estavam à porta e ele passou por eles em silêncio, como sempre. No portão olhou para frente e não reconheceu a fachada da casa. Mas pouco a pouco os seus olhos foram se acomodando com o amarelo desbotado. Reparou, ainda que, no quintal pilhas de entulho se acumulavam em um canto e outro. Olhou desolado para os vizinhos e entrou.
É... Havia sim uma ameixeira e um pé de limão rosa na frente da casa. E o abacateiro no quintal do Juraci.
E os outros quintais das outras casas. Todos com árvores, jardins, pássaros, folhagens, formigas e pés de mamona a onde habitavam taturanas gigantes.
Mas tudo isso existiu de verdade?
A verdade?
O que é a verdade?
Ao entrar em casa pensou em falar com sua mãe que havia visto o seu irmão no portão. Mas ao chegar à sala percebeu, agora com lucidez que, ela estava vazia. Nem sua mãe e nem o televisor estavam lá. Aí se deu conta de que vendera os móveis há muito tempo.
Sua mãe realmente morrera e que sua presença fantasmagórica era apenas uma impressão que tinha de tempo em tempo. Só não se lembrava exatamente quando ela morrera e nem se lembrava do enterro.
Na cozinha restara apenas uma geladeira caindo aos pedaços e que sempre juntava muito gelo e o velho fogão. Havia ainda uma mesa velha com uma fruteira a onde nunca havia frutas.
Mais nada.
Agora a pouco eu tentei lembrar-me do meu pai, da minha mãe e dos meus irmãos.
Não consegui ver as suas feições por mais que eu tentasse.
Aí me veio à tona um menino a quem chamavam de Ismael e que tinha dois irmãos.
Acho que a minha história se confundiu com a dele.
Havia um orfanato. Orfanato José Maria.
Ou será que era Maria José?
Tudo voltou a ficar confuso.
As fotos que vira num álbum então não eram minhas?
Quem era Ismael? Onde eu o conheci?
Percorremos longas estradas e muitas vezes não reparamos bem nos caminhos.
Paisagens que nunca mais serão vistas ficam pra trás.
Perdidas para sempre.
Lembrei-me de repente de uma frase: O horizonte sempre em frente e o céu sempre longe.
Ele ficou parado na cozinha não se sabe por quanto tempo. A garganta estava seca. Pegou outra cerveja na geladeira e voltou ao quarto. Lá havia um colchão esburacado e a velha televisão sobre o criado mudo. Suas roupas estavam mais ou menos dobradas dentro de uma caixa de papelão.
Enquanto a noite se instalava quase que definitivamente enrolou outro baseado e fumou.
Já estava na hora da telenovela.
Um poema martelava a sua cabeça.
As frases soltas não se ligavam umas as outras.
É preciso escrever, pensou.
Olhou pela janela e viu novamente a fábrica.
Os operários estavam saindo carregando suas mochilas, sacolas, bolsas. Os olhares fadigados e vermelhos devido ao fogo. Mesmo assim conversavam alegremente.
Sentiu vontade de chorar, mas não chorou.
A rua onde morávamos era uma rua comprida que subia e depois descia, aí havia uma curva que beirava uma represa. Do outro lado das águas escuras da represa era uma mata densa e fechada.
Ah! As coisas me vêm assim fragmentadas.
Essas lembranças são minhas ou de Ismael?
Faço um balanço do que fui e do que sou.
O que sou é a soma do que fui?
É provável.
Mas do que eu fui eu não me lembro ao certo.
Eu criança, eu adulto, eu morrendo seremos a mesma pessoa?
Ou seremos pessoas diversas dialogando umas com as outras?
Abriu a gaveta do criado mudo e encontrou uma chave. Era a chave do velho Opala que estava na garagem esquecido.
Resolveu tomar um banho e trocar de roupas.
Sentia tudo encardido. Ele, as roupas, as paredes da casa.
Ficou mais de uma hora no chuveiro com as mãos na cabeça e os olhos fechados. Em seguida escovou os dentes e fez a barba.
Pegou o velho caderno de notas e escreveu um poema curto.
A tarde venta os eucaliptos...
Quem foi que escreveu isto?
A represa se chamava “Água Funda”. Devido mesmo ao negror de suas águas. Costumávamos ir lá quando cabulávamos aulas. Eu, Ismael, Ivete e Ivonete.
O Quarteto da Esperança. Assim nos chamávamos.
Era eu mesmo que ia lá ou era outra pessoa?
Alguma pessoa parecida comigo, talvez.
Ou talvez eu tivesse ouvido tudo isso no orfanato.
Mas havia mesmo um orfanato?
Já não sei.
São tantas imagens.
Rostos conhecidos misturados a rostos desconhecidos como num sonho ou num pesadelo.
Ele se vestiu com parcimônia. Uma calça jeans velha e desbotada, como no comercial. Camiseta branca, destas indianas.
Sentiu-se novamente nos anos sessenta. 68 para ser mais exato.
Decidiu pegar a estrada rumo ao litoral. Precisava ver o mar, com urgência.
Num átimo já estava na estrada com o velho Opala azul.
Coisa de viado, diziam os antigos amigos.
Mas agora o que importava, não havia mais amigos.
Em menos de duas horas já estava sentado em frente ao oceano olhando as ondas baterem na praia na noite escura.
O seu vai e vem continuo: Vai e vem... Vai e vem...
Adormeceu e despertou sobressaltado.
Já era de madrugada?
Um dia Ismael mergulhou na represa e não veio à tona. Ficamos preocupados, esperando e nada. Nós estávamos acostumados a ficar só no raso e por isso não nos aventuramos a procurá-lo. Devia ser brincadeira, com certeza, bem típica de Ismael que era um palhaço. Mas o tempo passou e nada. Ele devia ter saído do outro lado, beirando a mata e agora ria de nós. Escureceu e nada. Fomos embora calados. Ele devia estar em casa.
Ficou ali ainda sentado na areia como que hipnotizado pelas ondas...
Cogitou voltar pra casa, mas depois pensou: Para quê?
Seu irmão havia ido mesmo para o Tibete?
Estaria vivo ou morto?
E sua irmã?
Nunca mais entrara em contato.
Sua mãe estava definitivamente morta.
Só o seu fantasma o atormentava.
O seu pai?
O seu pai era como um mito, nunca havia existido de verdade.
No outro dia ficamos sabendo que encontraram o corpo de um menino boiando na represa.
O seu casamento fracassou. Não tivera filhos. Até a sua cachorra, sua única companheira falecera há alguns meses, velhinha e com grandes tetas.
Não havia mais ninguém.
Ninguém importante ou que se importasse.
Ficou mergulhado naqueles pensamentos de uma forma um pouco sado masoquista.
Uma melancolia profunda estabeleceu-se entre ele e o mar.
Uma melancolia como as das baleias.
Voltou para o Opala que estava estacionado ali perto e, saiu em grande velocidade.
Depois que Ismael morreu, eu e Ivete nunca mais nos vimos. Seu Laerte mudou-se com as meninas.
Algumas casas foram desapropriadas e demolidas por causa da estrada que estava sendo construída e, que ligava a cidade ao litoral.
Um a um todos foram sumindo.
Os meninos, as meninas, as casas e as árvores.
A vila partiu-se em duas. Uma parte de um lado da estrada e outra no outro lado.
As casas que ficaram pouco a pouco foram se modificando, e vieram outras casas mudando a paisagem.
Havia lapsos de memória.
Os fantasmas que habitavam a sua casa e a sua mente apareciam e desapareciam num vem e vai como as ondas.
Sentiu um enjoo de tudo. Da vida. Do mundo...
Acelerou cada vez mais.
Ao longe tremulava uma bandeira que ele julgava ser uma bandeira branca.
Amanhecia e uma neblina a princípio tênue e em seguida cada vez mais densa impregnou a estrada.
Não se sabe da onde surgiu um carro prata.
Foi uma fração de segundos.
Fração de segundos?
Havia escrito isso um dia: Uma fração de segundos a distância entre a vida e a morte.
Depois veio um estrondo que reverberou sobre o seu corpo como um espasmo que ele não sabia se vinha de dentro ou de fora.
A paisagem avermelhou-se e ele esperou a escuridão.
Mas o que veio foi o deserto.
O sol escaldante.
A excessiva claridade.
III
De quem são essas lembranças?
São minha ou de outra pessoa?
De repente vejo beliches num orfanato. Os meninos adormecidos na cama.
Lembro-me de fotos num álbum.
Não me recordo de nenhum retrato meu, ou de meus pais e dos meus irmãos.
Lembro-me apenas do rosto de Ismael sorrindo e de Ivete.
O rosto salpicado de sardas, os cabelos dourados, uma leve pinta na face perto dos lábios, tão vermelhos como um morango maduro.
Naquela tarde que voltávamos da represa para casa nos beijamos no portão da chácara.
A vila estava agora acabada.
Tudo mudou.
Os meninos agora são homens.
Onde estarão todos?
Foi nesta vila que eu morei ou foi no orfanato?
Ou foi em ambos os lugares?
Tento recompor tudo na mente...
Mas as peças são como as de um quebra cabeças impossível de montar.
Olho para o espelho e vejo o meu reflexo.
Eu e o meu reflexo seremos a mesma pessoa?
Comentários
Postar um comentário