SOLIDÃO (Curtas metragens)
I
DEVEMOS PROSSEGUIR...
Devemos prosseguir, não há muito que fazer. As coisas são importantes na medida em que são importantes. É óbvio. Mas as maiorias das coisas são superficiais, passageiras, efêmeras. Também tudo isso é muito óbvio. Ele parou no boteco no final da tarde. Fazia um frio danado. Pediu um conhaque, e olhou para os lados. Avistou algumas pessoas que frequentavam o bar quase todos os dias. As cumprimentou de longe com um gesto. Hoje não queria falar muito. Não contar histórias. Não ouvir piadas. Queria apenas tomar o seu conhaque. Depois ir para casa.
Toda história tem um início. A dele não teria? Sim, lá na infância, há muitos anos atrás. A família era grande então, havia os avôs, os tios todos, os primos, irmãos, datas importantes. Mas já foi há tanto tempo. Não se lembrava mais de quase nada. Bebeu enfim o seu conhaque, pagou e se foi. Os avôs e tios, todos estavam mortos. Lembrou do quintal da casa da avó materna, o pé de café com suas frutinhas vermelhas. O cheiro de gente velha exalando na casa. O primo Tadeu que jogava bola formidavelmente. Vai ser jogador de futebol. Não foi.
Havia todo um itinerário a seguir. Passar no mercado, comprar carne. Metrô. Ônibus. Uma caminhada a pé até em casa. O que foi mesmo que aconteceu a Tadeu? Morreu? Não, não morreu. Mudou pro interior. Isto já faz mais de dez anos. Ao chegar a casa lavar a louça na pia desde ontem. Jogar água no quintal para tirar o cheiro de urina dos cachorros. Alimentar os cachorros. Mas agora ainda no ponto o ônibus demorava a passar. Este ônibus sempre demora. Principalmente no fim de semana. Mas hoje é segunda. Não deveria demorar tanto.
O pé de café com frutinhas vermelhas. Esta imagem permanece. A avó doente no hospital há semanas morreu. Sua mãe chegando ao velório com os olhos inchados. O ônibus está vindo. Ainda tem que passar no mercado. Mas isto já foi dito se eu não me engano. Esta mania dele conversar com ele mesmo. Pegou o ônibus e sentou no fundo. Ainda bem que não estava cheio. Como quase sempre passou no mercado comprou carne, batatas, cebolas, três latinhas de cerveja das mais baratas. Não gostava de demorar no mercado. Caixa rápido. Depois ir pra casa. Sim, sempre o mesmo itinerário. A avó morreu como era esperado. Quem mais chorou foi o tio Hélio. Era ele o mais novo? Não se lembra mais. Tadeu não entrou mais em contato. Ia ser jogador de futebol. Não foi.
Pegar o metrô até o terminal de ônibus. Mais espera. Outro ônibus. Depois uma caminhada a pé descendo a rua até a vila. Na esquina ficam sempre uns meninos parados fumando maconha. Todos se reuniam no natal. Os primos eram muitos. Brincavam no quintal de terra. O pé de café no meio, com as frutinhas vermelhas. Não entendia porque o café era preto. O Tadeu ia pro campinho jogar bola. A prima Márcia era a menina mais bonita que conhecia. Chegar a casa abrir o portão. Fechar o portão. Abrir a porta. Ascender à luz. Os cachorros pulando sobre as suas pernas. As coisas são importantes na medida em que são. Quantos pensamentos inúteis passavam pela sua cabeça.
Agora é lavar a louça. Preparar o arroz, a salada, fritar um bife, talvez um ovo. Assistir a novela, que anda muito chata. O tio Hélio morreu como indigente. Descobriram anos depois. Depois se seguiram outros. A casa da avó era alugada. Ainda está lá. Um dia passou em frente. Não tem mais o pé de café. É tudo cimentado. As pessoas têm esta mania de colocar piso em tudo. A Márcia mudou pra Londres, já faz alguns anos. O Tadeu que ia ser jogador de futebol não foi. Agora tem um boteco no interior. Não se lembra mais qual cidade. Preparou a comida e jantou. Não estava lá com muita fome. Alimentou os cachorros. Jogou água no quintal. Foi até o portão e olhou a rua. Os meninos estavam lá na esquina. Eles sempre estão lá. Entrou pra casa. Arrumou algumas roupas que estavam dispersas pelo quarto. Assistiu a um filme repetido na televisão, depois da novela. Já ia pra dez anos que sua mãe morrera. Mas se lembrou dela no velório da avó com os olhos inchados. Ele era criança. Tinha toda uma vida pela frente. Hoje iria dormir mais tarde. As coisas devem prosseguir. Toda história tem um começo. Porque a sua não? Mas afinal as coisas são importantes na medida em que são.
II
HOJE ESTÁ CHOVENDO MUITO...
II
HOJE ESTÁ CHOVENDO MUITO...
Hoje está chovendo muito... Muito. É assim que inicio. Tudo tem início e tem fim. Mas eu não acho o começo das coisas todas que penso. Estarei morto em breve? Escrevi isto quando tinha vinte anos, foi quando o meu pai morreu se não me engano. Tenho me enganado em tantas coisas. Está chovendo muito, o meu pai morreu, eu não sei quando. Minha mãe também se foi. E ontem bebi duas caipirinhas de vodka e assisti a um programa na televisão que falava de religião. Pensei em rezar, mas não rezei. Não sou lá muito religioso. Pensei nos amigos, quais amigos? Mas há os livros que me fazem companhia. Os que emprestei não me devolveram. Ficaram fazendo falta em algum lugar da estante. Minha mãe também se foi é certo, todos se vão um dia, é assim, as pessoas estão juntas e não estão, é assim. Hoje está chovendo muito. Passei no sebo e comprei um livro. Eles me fazem companhia. Um livro de filosofia. Queria dar um nó na.cabeça. Não pensar em todas as hipocrisias políticas, ecológicas, artísticas. A vida é um lixo. Não, não é. A arte cura. Não, não cura. A cura é que cura. Não vamos pensar em arte, pelo menos não desta vez. Mas é tudo um processo. Ora! Já sabemos disso. O meu pai morreu já faz algum tempo, sinto falta das suas mãos grossas acariciando o meu rosto. Minha mãe também se foi há tão pouco tempo.Todos morrem é certo, mas todos vivem também. Ora! É todo um processo. A arte cura, mas não ressuscita. E no fim das contas para quê saber de história? Eu não vou mesmo escrever a minha autobiografia. Escrevi isto quando tinha vinte anos. Foi quando o meu pai morreu se eu não me engano. Mas passei no sebo assim mesmo e comprei o livro. Vou fazer teatro mesmo que sozinho e um dia eu morro. Comprei um livro do Espinosa. Queria dar um nó na cabeça. As coisas se repetem. É assim. Os dias são novos. Há pouco tempo minha mãe morreu e já faz tanto tempo. Sinto falta dela cantarolando na beira do tanque. Mas eu tenho três cachorros e eles me fazem companhia. E há ainda os livros. Os que emprestei não retornaram. Pensei nos amigos. Quais? Eu não gosto de tapinha nas costas. Tenho impressão que um dia eu fui casado não sei com quem. Eu não encontro um começo nas coisas que penso. Elas também não têm fim. Vão e voltam. Melhor mesmo ler Espinosa. Dar uma entrevista na televisão. Falar mesmo sobre o quê? Comprei o livro no sebo, bem barato. Queria dar um nó na cabeça. Bebi duas caipirinhas de vodka e assisti televisão. Dei comida pros cachorros. São três, Beethoven, Mozart, Nina Simone. Um dia estarei morto, é certo. É um processo. Os dias são novos. E as noites. Ah! As noites. Vou escrever um monólogo. Eu não encontro um começo nas coisas que escrevo. E hoje está chovendo muito e eu estou com fome. Marquei um encontro com alguém que não apareceu. Então comprei um livro no sebo. Não gosto de carregar guarda-chuva. E a conclusão é sempre a mesma o meu pai e a minha mãe morreram. Um dia eu fui casado e os amigos se foram. Amigos? Queria dar um nó na cabeça, comprei um Espinosa. E ontem tomei duas caipirinhas de vodka achando que a arte cura, mas não cura. A cura é que cura. E as coisas que penso não tem começo e nem fim. Mas tem os meus cachorros, ficamos os quatro na cama assistindo na televisão um programa sobre religião. Não gosto de ficar rezando o pai nosso a toda hora. E afinal pra quê estudar história? Mas tudo é um processo. Os dias são novos e as noites também. E afinal de contas eu sou um escritor de monólogos. De tanto falar com as paredes elas ficaram surdas. A morte é certa, mas a vida também é. Ouvi isto outro dia de um ator de televisão. Não me lembro exatamente sobre o que ele falava. Alguma coisa sobre a cura da arte ou a arte da cura. Mas ontem acho que eu estava bêbado. E o programa sobre religião era a palestra de um filósofo famoso que eu não me lembro o nome. Não gosto de rezar o pai nosso a toda hora. Foi o que eu pensei. Parece que ele também citou Darwin. Eu já estava na segunda caipirinha. Não me lembro a que horas dormi. Acordei. Estava chovendo muito. É todo um processo. Passei no sebo e perguntei ao dono. Tem Espinosa? Tem. Você quer dar um nó na cabeça. Ele disse. Eu ri. As coisas que penso não tem começo e nem fim.
Muito bom véio. Lembrei de um amigo que usa chapéu côco. Você!
ResponderExcluirGrato.
Excluirme vi algumas vezes nessas coisas que pensamos sem sentido, mas com um muito ritmo alucinante, cor palavras ora doces ora acidas enfim bem envolventes, enfim solidão, desnuda e viva, valeu
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