O ENGENHEIRO METAFÍSICO.(A Performance)
O ENGENHEIRO METAFÍSICO:
(colagem dos textos Tabacaria, Aniversário e trechos de O
Guardador de Rebanhos)
TEXTO: ÁLVARO DE CAMPOS/ALBERTO CAIEIRO
(Fernando Pessoa)
ADAPTAÇÃO CÊNICA: GABRIEL ARCANJO RODRIGUES
Contribuição no roteiro: Roberto Junior.
Cena 1:
Álvaro de Campos: Não sou nada... Nunca serei nada... Não
posso querer ser nada... A
parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo... (enche a taça de vinho e com a taça
na mão, vai ao primeiro plano, observa a janela, olha a paisagem lá fora) Janelas do meu quarto... Do meu quarto
de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é... E se soubessem quem é o
que saberiam? (bebe todo o
conteúdo do vinho na taça) Dais
para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, para uma rua inacessível
a todos os pensamentos... Real, impossivelmente real... Certa,
desconhecidamente certa... Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos
seres... Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens...
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada! (pausa, vira-se de costas e vai ao
fundo, enche novamente a taça de
vinho e dá um gole) Estou
hoje vencido, como se soubesse a verdade... (vira-se,
mais efusivo, faz um brinde) Estou
hoje lúcido! (risada
sarcástica) Como se estivesse
para morrer e não tivesse mais irmandade com as coisas... Se não uma despedida,
tornando-se esta casa e este lado da rua... A fileira de carruagens de um
comboio e uma partida apitada de dentro da minha cabeça! E uma sacudidela dos
meus nervos! E um ranger de ossos na ida... (pausa,
suspiro fundo, agora num sussurro teatral) Estou hoje perplexo...Como quem
pensou, e achou e esqueceu... (num
gesto para o exterior) Estou
hoje dividido entro a lealdade que devo a tabacaria do outro lado da rua como
coisa real por fora e a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por
dentro... (pausa, bebe todo conteúdo da taça, fica parado em
frente à janela refletindo) Falhei
em tudo... Como eu não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada! A
aprendizagem que me deram eu deitei dela pela janela das traseiras da casa...
Fui até o campo com grandes propósitos, mas lá só encontrei ervas e árvores...
E quando havia gente, era igual à outra... Saio da janela... (sai da janela) Sento-me numa cadeira (senta-se no banco no primeiro
plano) Em que hei de pensar?
(senta-se na posição do “Pensador” de Rodin).
A.C: Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso.
Fim da cena 1.
Cena 2:
(na postura do “Pensador” de Rodin) O que sei eu do que serei eu que não sei o
que sou? Ser o que penso? Ora! Mas eu penso ser tanta coisa, e há tantos que
pensão ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? (risada sarcástica) Neste momento cem mil cérebros se
concebem em sonho gênios como eu e, a história não marcará quem sabe nenhum!
Não haverá se não estrume de tantas conquistas futuras! (desmancha o desenho corporal, olha para o chão
e vê a bíblia, pega-a, e fica com ela nas mãos) Não! Eu não creio em mim! Em todos os
manicômios há doidos malucos com tantas certezas... Eu que não tenho nenhum, a
certeza, sou mais certo ou menos certo? Não...
Nem em mim... (senta-se) Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
não estão há esta hora gênios para si mesmos sonhando? Quantas aspirações
altas, e nobres, e lúcidas... Sim, verdadeiramente, altas, e nobres, e lúcidas!
E quem sabe se realizáveis não verão a luz do sol real, nem acharão ouvidos de
gente? (levanta-se
efusivo) O mundo é para quem nasce
para conquistá-lo e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha
razão! (senta-se novamente no
banco, pausa) Ah! Eu tenho
sonhado mais que o que Napoleão fez... Tenho apertado ao peito hipotético mais
humanidades do que Cristo... Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant
escreveu... Mas sou e serei sempre o da mansarda, ainda que não more nela...
Serei sempre o que não nasceu para isso... Serei sempre o que só tinha
qualidades... Serei sempre o que esperou
que lhe abrissem uma porta ao pé de uma parede sem porta... E que cantou a
cantiga do infinito numa capoeira... E que ouviu a voz de Deus num poço
tapado... (levanta-se
bruscamente) Crer em mim?
Não! Nem em nada! (pausa, deixa a bíblia cair no chão fazendo barulho,senta-se) Ah! Derrame-me a natureza sobre a
cabeça ardente... O seu sol... A sua chuva... O vento que me acha o cabelo... E
o resto que venha se tiver que vir ou não venha! Escravos cardíacos das
estrelas! Conquistamos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama... Mas
acordamos e ele é opaco, levantamo-nos (levanta-se) e ele é alheio... Saímos de casa e ele
é (gesto largo no envolta) a Terra inteira, e o sistema solar e a
Via Lacta e o indefinido! (com
a taça na mão vai à
janela) Come chocolates,
pequena... Come chocolates... (pequeno
gole no vinho) Olha que não
há mais metafísica no mundo se não chocolates... Olha que as religiões todas
não ensinam mais que a confeitaria... (mais
alguns goles no vinho) Come
pequena suja, come! Pudesses comer chocolates com a mesma verdade com que
comes... Mas eu penso... E ao retirar o papel de prata que é de folha de
estanho deito tudo para o chão... (desce
até o chão) Como tenho
deitado a vida! (começa a
recolher e examinar alguns
manuscritos, depois com os manuscritos nas mãos, semi erguido) Mas ao menos resta da amargura do que
eu nunca serei a caligrafia rápida destes versos, pórtico partido para o
impossível! Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas... Nobre ao menos no gesto largo com que atiro a
roupa suja que sou sem rol pra o decurso das coisas e fico em casa sem
camisa... ( cai de joelhos, coloca os óculos, fica ajoelhado no chão, pega um
manuscrito e lê) No tempo em que festejavam os dias dos meus
anos, eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos
era uma tradição de há séculos e a alegria de todos, e a minha estava certa
como uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos eu
tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, de ser inteligente para
entre a família, e de não ter as esperanças que os outros tinham por mim...
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar
para vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim mesmo, o
que fui de coração e parentesco, o que fui de serões de meia-província, o que
fui de amarem-me e eu ser menino, o que fui... Ai, meu Deus! O que só hoje sei
que fui... A que distância... Nem o acho... (fecha
os olhos) Fui eu que escrevi
isso? (abre os olhos e olha para o alto)
"Olá, guardador de rebanhos, Aí à
beira da estrada, Que te diz o vento que passa?"
A.C.: "Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita coisa mais do que isso. Fala-me
de muitas outras coisas. De memórias e de saudades... E de coisas que nunca
foram."
A.C.: "Nunca ouviste passar o vento. O
vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.
Fim da cena 2.
Cena 3:
(olhando para o alto como se fosse fazer
uma oração) Tu que consolas... Que não existe e, por isso consolas... Ou deusa
grega concebida como estátua que fosse viva... Ou patrícia romana
impossivelmente nobre e devassa... Ou princesa de trovadores gentilíssima e
colorida... Ou marquesa do século dezoito decotada e longínqua... Ou cocote
célebre do tempo de nossos pais... Ou não sei o quê moderno... Eu não concebo
bem o quê... (vai ao fundo e pega alguns manuscritos da mesa) Tudo isso
sejas o que for que sejas! Se pode inspirar que inspire! (vai ao primeiro plano e atira pra frente os manuscritos) Ah! O meu coração é um balde despejado! Como os que invocam espíritos invocam
espíritos invoco a mim mesmo e não encontro nada! Chego a janela e vejo a rua com uma nitidez
absoluta, vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, vejo os
entes vivos vestidos que se cruzam, vejo os cães que também existem! E
tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo... E tudo isso é estrangeiro
como tudo! (vai ao fundo, pega
a garrafa de vinho, bebe
no gargalo e ainda de costas) Vivi...
Estudei... Amei... E até cri... (vira-se
de frente) Cri! (vai
se aproximando da janela) Hoje
não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu... Olho a cada um os
andrajos, as chagas e a mentira e penso: Talvez nunca vivesses, nem amasses,
nem cresses, por que é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada
disso! (começa a balançar o
braço direito) Talvez eu
tenha vivido apenas como um lagarto a quem cortam o rabo... (balança mais o braço direito) E que é rabo para aquém do lagarto,
remexidamente... (vai descendo
para o chão em meio aos manuscritos) Fiz
de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz... O dominó que eu
vesti era errado, conheceram-me logo por quem não era e eu não desmenti e
perdi-me... Quando quis tirar a máscara, estava pegada a cara... Quando a tirei
e me vi no espelho, já tinha envelhecido, estava bêbado, já não sabia
vestir o dominó que eu não tinha tirado, deitei fora a máscara e dormi no vestiário
(desce totalmente ao chão) como um cão tolerado pela gerência por ser
inofensivo e vou tentar escrever esta história para provar que sou sublime...
Su-bli-me... (pega alguns manuscritos) Essência musical dos meus versos
inúteis... (levanta-se com vigor) Quem me dera encontrar-te como algo
que eu fizesse e não ficasse sempre parado defronte a tabacaria de
defronte calcando os pés a consciência de estar existindo como um tapete
em que um bêbado tropeça ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia
nada... (caminha efusivamente
pelo espaço murmurando) Nada...
Nada... (senta no banco no
primeiro plano)
A.C.: Há metafísica bastante em não pensar em nada. Metafísica? Que
metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E
a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos
dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para
que vivem Nem saber que o não sabem?
Fim da cena 3.
Cena 4:
(observando pela janela) Mas o dono da tabacaria chegou à porta...
E ficou a porta... Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada e com o
desconforto da alma mal entendendo... Ele morrerá... E eu morrerei... Ele
deixará a tabuleta e eu deixarei... (olha
para o chão) versos... A
certa altura morrerá a tabuleta também... (olha
novamente pro chão) E os
versos também... Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta...
E a língua em foram escritos os versos... (levanta-se
e olha envolta) Depois
morrerá o planeta girante onde tudo isso se deu! (vai ao primeiro plano) Em outros satélites de outros sistemas
qualquer coisa como gente continuará fazendo coisas como versos e vivendo
por baixo de coisas como tabuletas... Sempre uma coisa defronte pra outra...
Sempre uma coisa tão inútil como a outra... Sempre o impossível tão estúpido
como o real! Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da
superfície... Sempre isso ou sempre outra coisa ou nem uma coisa e nem
outra!
A.C.:
"Constituição íntima das coisas"... "Sentido íntimo do
Universo"... Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada!
(senta-se no chão, no primeiro plano, e de
lá observa a janela) Mas um homem entrou na tabacaria... Para comprar tabaco? (coloca as mãos na cabeça) A realidade plausível cai de repente
em cima de mim... (levanta-se
meio cambaleante) Semi ergo-me
enérgico, convencido, humano... E vou tentar escrever estes versos em que digo
o contrário... (vai ao fundo e ascende um cigarro) Ascendo um cigarro ao pensar em
escrevê-los... (dá tragadas generosas, observando à fumaça) E saboreio no cigarro a libertação de
todos os pensamentos... (brinca
com a fumaça pelo espaço cênico) Sigo
o fumo como a uma rota própria... E gozo num momento sensitivo e competente a
libertação de todas as especulações e a sensação de que a metafísica é uma
conseqüência de estar mal disposto... (senta-se
no banco e joga a cabeça para trás) Depois
eu deito-me para trás na cadeira e continuo fumando... (num êxtase) Continuo fumando! Enquanto o destino
me conceder eu continuarei fumando... (olha
para o cigarro e apaga-o, abaixa a cabeça sobre
os joelhos) Ah! Se eu casasse
com a filha da minha lavadeira... (levanta
o tronco, e olha para
frente, patético) Talvez eu
fosse feliz... (pausa, depois
uma reação repentina) Visto
isto, levanto-me da cadeira... (levanta-se) Vou à janela... (vai à janela)
Mas o homem saiu da tabacaria... Metendo
o troco na algibeira das calças? (arregalando
os olhos numa atitude engraçada) Ah!
Conheço-o, é o Esteves! Sem
metafísica! O dono da tabacaria chegou à porta... Por um instinto divino o
Esteves voltou-se e viu-me, acenou-me adeus... Gritei-lhe: (estendendo o braço direito num aceno
exagerado) Adeus ó Esteves! E
a realidade resconstrui-se-me sem ideal e nem esperança... E o dono da
tabacaria... O dono da tabacaria sorriu... (pausa,
senta-se na cadeira, olhar fixo pra frente, a luzes vão apagando em resistência
até a escuridão total)
FIM.
Gênese para a encenação:
Álvaro
de Campos passou a noite acordado e bebendo. Ele mora no quarto andar de um
prédio no centro (que pode ser Lisboa), em frente há a estação de trem e lojas
do comércio, entre elas a tabacaria e a confeitaria. São as últimas horas da
madrugada, amanhece, a luz do dia vai preenchendo o modesto quarto. Álvaro
continua bebendo na sua insônia, Passou a noite escrevendo e os manuscritos
estão espalhados pelo chão. Conforme amanhece o movimento nas ruas se
intensifica, Transeuntes partindo e chegando de viajem, o comércio abre suas
portas e os fregueses começam a entrar e sair. Na estação de trem, comboios
chegando e partindo. Mendigos e cães aparecem em pontos esparsos, todo tipo de
gente circula pelas ruas, a pé ou nos seus automóveis, sozinhas ou acompanhadas
com crianças.
Sinopse:
Textos
“Tabacaria” e "Aniversário" de Álvaro de Campos e "O Guardador
de Rebanhos" de Alberto Caieiro, dois dos principais heterônimos de
Fernando Pessoa.
Um
poeta de meia idade, sozinho no seu quarto e diante de uma visão fantasmagórica
do seu mestre, faz um balanço da sua vida, até o ponto em que chegou. O
discurso que ele faz para si mesmo é ao mesmo tempo um discurso metalingüístico
e filosófico, beirando o existencialismo de Sartre. Este discurso poético que é
exposto enquanto um desabafo existencialista gira em torno do Tudo e do Nada,
do Ser e do Não Ser.
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